Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades, inclusive na tecnologia

As guerras do século XXI serão em dados, nas empresas e governos, diz Krajcer.

Na semana passada, tivemos mais alguns eventos reforçando o poderio exponencial das empresas de tecnologia. Vamos a alguns fatos: no trimestre em que o PIB dos Estados Unidos encolheu mais de 30%, as 5 grandes de tecnologia Apple, Amazon, Facebook, Microsoft e Google mostraram resultados extraordinários, muito acima do previsto.

A Amazon praticamente dobrou seu lucro comparado ao mesmo período do ano anterior. A Apple, por sua vez, retomou o posto de empresa aberta mais valiosa do mundo, ultrapassando simplesmente a Saudi Aramco, petroleira estatal da Arábia Saudita que controla as reservas e produção de petróleo nesse país. Não é impressionante que enquanto isso, no mesmo período, a economia norte americana caía 32,9%?

Essa valorização da tecnologia não é de agora. Se compararmos o desempenho nos últimos dez anos da Nasdaq, bolsa de valores americana especializada em tecnologia, com o índice Dow Jones, o índice de bolsa americana com todos os segmentos da economia, a discrepância é clara. Nesse período, o Dow Jones se valorizou aproximadamente 150%, enquanto a Nasdaq passou os 350% de valorização!

Mas, como diria o tio Ben: “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”*.

Toda essa valorização das ações reflete a influência crescente que as empresas e suas tecnologias têm em nossa sociedade.

Em nossa experiência recente, ainda sob efeitos da pandemia, a tecnologia suportou bastante nossa sociedade em não parar. Já falei disso em artigo anterior, o isolamento social foi abrandado pela webconferência, compras em portais, delivery de comida, pagamentos digitais e sem contato, e por aí vai.

Mas todo esse poderio tem (ou deveria ter limites)? Será que além de impactos positivos, há impactos negativos ou grandes riscos advindos do uso massivo da tecnologia?

Bom, nessa mesma semana, os líderes da Amazon, Google, Facebook e Apple prestaram depoimento ao Senado americano. Há investigações sobre monopólio, abuso de poder e práticas antitruste. Antes disso, há toda uma controvérsia do papel das mídias sociais e plataformas de busca em nossa sociedade. Será que são ou foram tendenciosas? Será que influenciam a opinião pública em temas relevantes (um exemplo é a eficácia da hidroxicloroquina) removendo ou fazendo uma curadoria dos posts ou buscas? E o escândalo da Cambridge Analytica e a potencial interferência nas eleições americanas passadas?

Acredito que muita água ainda vai passar por baixo dessa ponte. E devemos, enquanto sociedade, acompanhar isso de perto.

Nem vou entrar no mérito da polarização política das redes no Brasil, escritório do ódio, projeto de lei das fake news etc. Esses temas merecem reflexões maiores que não caberiam aqui. Mas vale a reflexão do papel das tecnologias e seus impactos no cotidiano das pessoas. Há uma linha tênue entre a comodidade e capacitação que nos prestam e o abuso de influência.

Essa preocupação só tende a aumentar com o avanço tecnológico em várias frentes. Por exemplo, na mobilidade urbana, os veículos guiados por computação, até onde podem ou devem chegar? No reconhecimento facial, até onde ele facilita ações de segurança e até onde não invade nossas privacidades ou são usados de forma abusiva? Na biotecnologia, até onde vão os limites éticos relacionados à manipulação da vida?

Na segunda metade do século XX, o grande temor do mundo era a hecatombe nuclear, com duas potências claras tendo capacidade de destruir o planeta múltiplas vezes. Eu diria que atualmente, o mundo deveria ter duas grandes preocupações: os efeitos acumulados da exploração dos recursos naturais em nosso planeta – que é bem extenso e não vou entrar nessa discussão aqui – e os impactos do uso errado ou abusivo da tecnologia em suas mais variadas nuances. As guerras do século XXI serão em dados, tanto nas empresas, como nas nações.

E se vocês acham que isso é coisa do futuro, basta acompanhar os recentes ataques cibernéticos entre Irã e Israel. Sem enviarem nenhuma tropa ao outro país, nesses últimos meses têm se enfrentado virtualmente tentando entrar em sistemas vitais um do outro e em alguns casos, conseguindo impactar fisicamente instalações importantes.

Num desses casos, Israel alegou que o Irã tentou invadir sua infraestrutura de água impactando basicamente civis. Aparentemente, revidou atacando os sistemas de um importante terminal portuário iraniano.

O futuro do livro 1984 de George Orwell ou do filme Jogos de Guerra parece ter chegado e cada vez mais temos de nos relembrar da frase do tio Ben.

 * Essa frase foi alavancada ao imaginário dos quadrinhos quando o tio Ben, Benjamin Parker, a disse a seu sobrinho Peter Parker. E o influenciou para usar seus poderes recém adquiridos para o bem ao se tornar o Homem-Aranha. 

*Stephan Krajcer é fundador da fintech Cuore, no Canadá. Depois de trabalhar em bancos, decidiu empreender, desenvolvendo soluções para setores como o financeiro.

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