Em 2015, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) analisou a emissão dos tokens do Panela FC, que ficaram conhecidos com paneletas, segundo o qual era ofertada a possibilidade da aquisição de cotas dos direitos econômicos de atletas de futebol profissional. De acordo com a oferta, adquirindo esses direitos, o investidor estaria ajudando os clubes brasileiros a manter os seus talentos por mais tempo, bem como se beneficiaria dos ganhos financeiros em uma possível futura venda desse atleta.
A CVM considerou a operação da aquisição de parte de um Contrato de Aquisição de Porcentagem de Direitos Econômicos de Atletas de Futebol Profissional como um contrato de investimento coletivo ofertado publicamente, e como tal, caracteriza-se como valor mobiliário sujeito ao regime da Lei nº 6.385/76.
A rigor, a CVM aplicou o conhecido Teste de Howey tropicalizado, apurando que a oferta possuía as características de valor mobiliário, conforme o inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/1976. Primeiro, concluiu que haveria investimento, pois os investidores aplicavam recursos financeiros com a intenção de obter um ganho derivado desse investimento, ou seja, havia a previsão de distribuição de rendimentos.
Em segundo lugar, o investimento era formalizado por um Contrato de Aquisição da Porcentagem de Direitos Econômicos de Atletas Profissionais de Futebol. Em terceiro, era um investimento coletivo, pois foi oferecido indistintamente ao público em geral por meio de website.
Era oferta pública
O quarto elemento analisado foi se havia alguma forma de remuneração oferecida aos investidores, o que também existia por meio da distribuição do resultado da venda de atletas profissionais de futebol, prevista em contrato. A quinta questão avaliada foi se a remuneração oferecida teria origem nos esforços do empreendedor ou de terceiros, o que ficou mais uma vez caracterizado, pois os investidores recebem remuneração sem realizar qualquer esforço.
Por fim, os contratos foram ofertados publicamente, tendo em vista que a proposta de investimento foi ofertada ao público em geral por meio de seu website. Ou seja, por todos os ângulos que a questão foi analisada, entendeu a CVM que estavam presentes os elementos para caracterizar as paneletas como valores mobiliários, sujeitos a avaliação prévia da CVM para autorização ou dispensa.
A questão ganha uma complicação, pois de acordo com o Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol, em linha com o art. 18ter do Regulamento da FIFA sobre o Status e a Transferência de Jogadores, somente clubes e atletas têm direito a deter direitos econômicos de jogadores. É vedado a terceiros obter “direito de receber parte ou a integralidade de valores pagos ou a serem pagos por uma eventual transferência de atleta entre clubes, ou de obter qualquer direito em relação a uma eventual transferência.”
Se a CVM já havia barrado emissões baseadas em direitos econômicos relacionados a jogadores e a CBF corroborou um regulamento da FIFA proibindo a detenção desses direitos por terceiros, o que mudou para aprovarem o token do Vasco?
O mercado se alvoroçou com o recente anúncio do Vasco da oferta pública de ativos digitais junto com a área de digital assets do Mercado Bitcoin, conhecida exchange de criptoativos do mercado brasileiro. Como diz um grande amigo, o diabo mora nos detalhes, e fazendo uma avaliação superficial, poderia parecer que a CVM teria mudado sua posição ou existiria um risco de conflito com a CBF e FIFA, mas não é nada disso.
Os tokens ou ativos digitais emitidos pelo Mercado Bitcoin estão baseados em direitos creditórios não performados, oriundos de mecanismo de solidariedade eventuais e futuros detidos pelo Vasco. E isso faz toda a diferença!
Direitos reconhecidos
Primeiro cabe esclarecer que esses direitos creditórios não são oriundos dos direitos econômicos dos jogadores, que possuem as restrições da CBF e FIFA acima mencionada, pois são aqueles chamados direitos dos clubes formadores. De fato, a FIFA e a legislação brasileira reconhecem os direitos creditórios oriundos do chamado “Mecanismo de Solidariedade da Federação Internacional de Futebol”, não havendo restrições nesse caso de cessão ou antecipação desses direitos a terceiros.
Embora não tenham sido divulgados todos os detalhes, ao que se sabe, a CVM foi consultada previamente da operação e segundo constaria no Ofício nº 15/2020/CVM/SER, de 2 de outubro de 2020, aplicou Teste de Howey à oferta pública dos tokens do Vasco. Com isso, chegou à conclusão que não seria um valor mobiliário devido a pequenos detalhes que diferenciam essa oferta.
Na análise da CVM, da mesma maneira que as paneletas, os tokens do Vasco seriam objeto de oferta pública, formalizados por um título ou contrato, pois os investidores irão aplicar recursos financeiros para adquirir os tokens.
Além disso, o investimento seria coletivo. Mesmo que não exista uma união de recursos formada pelos aportes de cada investidor em prol de um único empreendimento ou projeto, tendo em vista que a compra dos tokens por um grupo de pessoas, ligadas pelo objetivo de ajudar seu clube ou apostar em seu jogador, demonstra um viés coletivo.
Vitória nos 50 min do 2º tempo
Mais do que isso, o investimento gera a expectativa de remuneração por parte do investidor, considerando o ganho proveniente do recebimento, pelo Vasco, dos direitos creditórios, embora dependam de diversos fatores como o desempenho dos jogadores escolhidos e a eventual negociação desses jogadores no futuro.
Tal e qual os dramas do futebol, aos 50 minutos do segundo tempo, quando parecia que nada mais poderia ser feito, eis que surge um elemento diferenciado que muda completamente o jogo. O Teste de Howey brasileiro é uma versão tropicalizada, segundo a qual caso um dos elementos do teste falhe, não fica caracterizado o valor mobiliário.
Surge, então, a pergunta final, sobre a origem da remuneração estar baseada nos esforços do empreendedor ou de terceiros. E essa foi a questão que derrubou o teste, pois a CVM entendeu que o possível ganho do investidor nada decorre do esforço do Vasco ou de qualquer terceiro interessado. Trata-se de direito de receber um pagamento incerto, que somente será devido quando e se o jogador for negociado.
Cai o castelo de cartas
Tal e qual um castelo de cartas, cai a regulação e surge a inovação. A falta do requisito formal leva à conclusão da CVM de que os tokens não possuem os requisitos necessários para configuração como valores mobiliários regulados pela autarquia, de acordo com os requisitos do inciso IX do artigo 2º da Lei n° 6.385/76, que foi a aplicação do Teste de Howey. Isso porque, no momento da oferta, o Vasco não possui qualquer interferência sobre eventuais ganhos por parte dos investidores, uma vez que os tokens se referem aos jogadores que já não estão mais no Vasco.
Assim, a inovação surge pelos detalhes ou pelo confronto com os reguladores, como foram os casos de Uber e Airbnb. Mas a criação dos novos ativos digitais é uma realidade que vem se ampliando em todo o mundo e o Brasil ainda resiste em aceitar. Nesse caso, a realidade vai se impondo aos poucos e a inovação se utiliza de detalhes de uma regulamentação arcaica para descobrir formas de tentar acompanhar esse mundo novo dos criptoativos.