Depois da revolução do Pix, que facilitou a vida dos brasileiros, o Banco Central (BC) lança oficialmente o nome Drex, do real digital. O termo tem dominado as manchetes e as conversas entre especialistas econômicos, entusiastas da tecnologia e a população em geral no últimos dias.
Desde o anúncio da nova nomenclatura, tem sido uma tarefa desafiadora elucidar com clareza o verdadeiro significado por trás do Drex, além de cada uma de suas letras. Como participante da equipe do Banco Inter no Piloto do Real Digital, temos nos dedicado profundamente ao estudo e compreensão desse conceito inovador.
Neste artigo, buscarei compartilhar minha perspectiva, moldada por mais de duas décadas de experiência em tecnologia, assim como minha experiência no universo do blockchain e das criptomoedas desde 2017.
Meu objetivo é compartilhar uma visão a partir do viés tecnológico, através das origens, implicações e perspectivas do Drex. Como gerente de tecnologia do Inter, é emocionante estar envolvido de perto, junto com meu time, nesse projeto inovador que mudará o jeito de fazer negócio e investimentos no Brasil.
Drex, o real digital: a CBDC brasileira
Drex, a denominação que o Banco Central atribuiu ao projeto de Moeda Digital do Banco Central (CBDC, sigla em inglês para Central Bank Digital Currency), representa um passo audacioso em direção à modernização financeira. O Banco de Compensações Internacionais (BIS), a “instituição dos bancos centrais”, criou o termo CBDC em 2016. Refere-se à incorporação das tecnologias de Distributed Ledger Technology (DLT, ou Tecnologia de Livro-Razão Distribuído, em português ) e/ou blockchain para moedas emitidas pelos governos. Na sequência desse posicionamento do BIS, nações como China, Índia, Estados Unidos (EUA) e outros protagonistas globais como a União Europeia (UE) têm embarcado na jornada de desenvolver suas próprias moedas digitais.
O Brasil tem se destacado como protagonista nesse cenário. Isso porque muitos países buscam uma solução confiável para transferência instantânea de dinheiro (um meio de pagamento), como o nosso Pix, que já é referência mundial. Enquanto isso, o Banco Central brasileiro está em busca de uma plataforma inteligente que vai muito além, criando uma plataforma moderna para nosso sistema financeiro.
Para entender toda essa modernidade, precisamos antes entrar em alguns pontos da tecnologia. Isso inclui decifrar o que é DLT, blockchain e smart contracts (contratos inteligentes), termos que estão sendo muito difundidos.
Entendendo a tecnologia por trás do Drex
Para entender como funcionará o Drex, é importante entender o conceito central de DLT, que é análogo ao de registros contábeis tradicionais. Mas, a DLT é um termo que abrange uma plataforma tecnológica distribuída, ou seja, roda em vários computadores. Isso permite registrar transações com garantia de ordem, confiabilidade e imutabilidade.
Imagine um livro contábil, onde cada linha adicionada registra o saldo anterior, a transação de dinheiro (entrada ou saída) e o saldo seguinte e não pode ser desfeita, sob pena de ter a soma final incorreta. A DLT implementa esse mecanismo e, assim, garante que o registro anterior tem é válido, o atual não poderá mais ser removido e um novo deve ser adicionado em seguida.
Blockchain, termo para “cadeia de blocos”, é uma implementação de DLT e é conhecido por ser a plataforma por trás das criptomoedas como bitcoin e ethereum. O crédito de sua concepção é de Satoshi Nakamoto, uma figura enigmática que apresentou a ideia em um documento de 2008. Nele, explica as bases tecnológicas para uma moeda transacionada e validada por computadores, independente de governos. Desde então, blockchain tem desencadeado uma revolução, proporcionando um alicerce tecnológico para a validação de transações em ambientes distribuídos em diversos casos de uso.
Essência da blockchain é a descentralização
A essência da blockchain reside na sua descentralização, funcionando como uma rede peer-to-peer (P2P), ou em português, par-a-par, como aquelas usadas para baixar Torrents e músicas). Imagine uma rede global de máquinas interconectadas, onde os participantes são desconhecidos entre si e não confiam uns nos outros. No entanto, precisam cooperar para realizar transações transparentes e seguras. A blockchain oferece a solução tecnológica para que essas transações, agrupadas em “blocos”, sejam validadas pela rede em uma colaboração autônoma.
Os intermediários dessa operação, os “validadores”, combinam de antemão qual algoritmo usarão para definir um consenso entre todos os participantes. Além disso, recebem recompensas por dedicar seus recursos computacionais para garantir a autenticidade das transações. E recebem punição caso tentem quebrar a integridade.
Como curiosidade, na rede Bitcoin, os validadores são chamados de “mineradores”, pois precisam executar um “trabalho árduo”, ou seja, vários cálculos matemáticos, mais rápido que os demais para terem o direito de adicionar o bloco na cadeia e serem recompensados. É o algoritmo que chamamos de Prova de Trabalho (PoW, proof of work, em inglês) e que gera alto consumo de energia, algo que recebe muitas críticas. No Drex não será necessário usar PoW e sim um algoritmo que não exige tanto consumo energético: a Prova de Autoridade (PoA, Proof of Authority). Nela, computadores autorizados são validadores.
Para assegurar essa integridade e a segurança das transações, a blockchain faz uso de criptografia e, principalmente, assinaturas digitais. Uma assinatura digital atua como um selo digital que verifica a identidade do remetente e a autenticidade da transação. Esse processo envolve o uso de uma chave pública, conhecida por todos, e uma chave privada, mantida em sigilo. A chave privada, frequentemente denominada de “carteira” ou “wallet” nas blockchains, é o cerne da segurança, permitindo que somente o detentor autorizado realize transações.
Contratos inteligentes são cruciais no real digital
Outro elemento essencial para compreender o Drex e suas implicações são os chamados smart contracts, ou contratos inteligentes, que desempenham um papel crucial na criação das soluções financeiras sofisticadas do ecossistema. A origem desse conceito remonta a 2012, quando os desenvolvedores da Ethereum, liderados por Vitalik Buterin, Gavin Woods e Mihai Alisie, introduziram a ideia de ter uma espécie de “máquina virtual”, como um computador em nuvem, em cada participante da rede.
Esse pequeno computador é capaz de executar códigos e algoritmos num ambiente seguro e limitado, mas o suficiente para alterar o resultado de uma transação. A esse conceito deram o nome de EVM (Ethereum Virtual Machine, ou Máquina Virtual Ethereum), e ao código executado chamaram de smart contracts.
Com esse código, é possível incorporar algoritmos durante as transações, estabelecendo regras e estados que conduzem os resultados da operação. Exatamente como num contrato entre as partes. É possível, por exemplo, criar um algoritmo que recebe dinheiro de várias pessoas e ao totalizar determinado valor, o envia a um destinatário, como fazemos na divisão de conta no restaurante ou financiamento coletivo. Ou ainda um algoritmo que recebe um valor, divide entre várias pessoas e envia a cada parte simultaneamente e numa única transação. É como acontece em caso de direitos autorais de música ou livro com vários autores.
Com smart contracts, é possível até criar acordos complexos, como um código de computador em que o comprador deposita o dinheiro para o pagamento de um carro, e este será entregue ao vendedor somente após a transferência do documento, garantindo a confiabilidade da transação para ambas as partes.
Banco Central baseia Drex na Ethereum
Imagine a aplicação desse conceito a um financiamento imobiliário. O vendedor entrega a chave do imóvel e, em resposta, a propriedade é automaticamente transferida ao banco. O processo evolui à medida que o comprador realiza pagamentos, adquirindo gradualmente uma maior fração do imóvel. Essa abordagem automatizada elimina a necessidade de um novo processo para garantir o cumprimento do acordo, reforçando a confiança e eficiência das transações. O imóvel, no final, será automaticamente transferido ao dono de direito, ou seja, o pagador que quitou a dívida ou o banco, em caso de inadimplência.
Ao conferir a propriedade final do bem conforme os termos acordados, os smart contracts se revelam como divisor de águas na gestão de ativos e transações complexas. Dessa forma, remodelam a interseção entre tecnologia e finanças.
Essa possibilidade de estabelecer regras em código para a movimentação de valores através de smart contracts é comumente referenciado como “Dinheiro Programável”. As possibilidades são infinitas, como em qualquer programa de computador. O Banco Central baseia a Drex em tecnologia da Ethereum, implementado pelo software de código fonte aberto Hyperledger Besu. Dessa forma, traz consigo o conceito de EVM e smart contracts.
Finanças Descentralizadas, criptomoedas e economia tokenizada
Os últimos anos testemunharam o florescimento de uma nova cadeia econômica paralela, baseada em uma revolução tecnológica: as criptomoedas e os smart contracts. Esse ecossistema descentralizado opera fora dos controles governamentais, sendo regido exclusivamente por tecnologia e algoritmos. Apesar da independência das estruturas estatais tradicionais, essa economia já possui um valor agregado de mais de US$ 1 trilhão.
Essa tecnologia habilitou empréstimos de dinheiro, a realização de investimentos que proporcionam liquidez a operações alavancadas de indivíduos desconhecidos. Também permitiu a autenticação de obras de arte digitais conhecidas como tokens não-fungíveis (NFTs) que podem ser utilizadas como garantia em empréstimos. Além disso, gerou uma gama de outras soluções que são agrupadas sob a sigla DeFi, que denota “Decentralized Finance” ou “Finanças Descentralizadas”.
A ascensão da DeFi representa uma reconfiguração profunda no panorama financeiro global. Isso porque capacita indivíduos a participarem de forma direta e autônoma no mercado financeiro, contornando intermediários convencionais. Com cada vez mais soluções criativas emergindo nesse ambiente, a DeFi não apenas se destaca como uma expressão tangível do potencial do blockchain, mas também reconfigura a relação entre tecnologia e finanças de maneira revolucionária.
DeFi oferece inovação e autonomia, mas exige familiaridade técnica para operação. Enquanto oferece vantagens, dois pontos precisam de atenção. A primeira é a posse das chaves criptográficas (carteiras ou “wallets”), que garantem controle absoluto sobre ativos digitais. A sua perda costuma ser irrecuperável. Outro ponto é que sua natureza descentralizada traz desafios como vulnerabilidades a ataques hackers em pontos de falha, brechas de segurança e riscos de fraudes. Isso sublinha a necessidade de equilibrar a conveniência com a segurança na busca por uma economia financeira descentralizada confiável.
Tokens digitais representando ativos reais
À medida que a DeFi continua a moldar o cenário financeiro global, é imperativo que a busca pela usabilidade e segurança continue. Superar esses desafios é fundamental para estender os benefícios da economia descentralizada a um público mais amplo, garantindo que a inovação tecnológica não ocorra às custas da segurança e acessibilidade.
Como efeito do uso de blockchains para soluções econômicas, surgiu também a possibilidade de criação de tokens digitais que representam ativos reais. Esses ativos podem ser, por exemplo, moedas, imóveis, ações e até mesmo obras de arte. Esses são armazenadas na blockchain com garantia de segurança e transparência das transações. Tokens são um código que representa digitalmente um ativo.
Como vimos, smart contracts permitem a execução automática das cláusulas acordadas entre as partes envolvidas. Transações de bens reais baseado em tokens digitais gera um novo tipo de economia, que chamamos de “Economia Tokenizada”. Ela traz diversos benefícios para o sistema financeiro como a redução de custos e a eliminação de
intermediários, tornando as transações mais rápidas, eficientes e baratas.
Economia tokenizada pode trazer inclusão financeira
A tokenização de ativos possibilita também a divisão de bens e ativos em frações. Portanto, facilita o acesso a investimentos antes restritos a grandes investidores. Um exemplo muito difundido é a tokenização de imóveis, onde pode-se comprar uma parte de um imóvel e usá-lo como garantia para um empréstimo.
Empresas também podem usar para vender partes de suas ações de forma muito mais barata do que em bolsa de valores tradicionais. Dessa forma, permite o acesso a mais dinheiro – de investidores menores, inclusive – pelas pequenas empresas sem precisarem de empréstimos.
A nova economia tokenizada representa uma mudança significativa no sistema financeiro global. Ela traz consigo a promessa de maior inclusão financeira, eficiência nas transações e acesso a investimentos antes inacessíveis. No entanto, é necessário um trabalho conjunto entre governos, instituições financeiras e empresas para estabelecer regras claras. E dessa forma, garantir que essa transformação aconteça de forma segura e sustentável para os investidores e evitar fraudes.
No Brasil, o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) têm se mostrado receptivos à adoção da economia tokenizada. Através do Drex, com uma blockchain regulada pelo governo, o Brasil pode avançar no entendimento de como aproveitar as oportunidades trazidas pela tecnologia. Assim, pode se tornar um líder na adoção da economia tokenizada, promovendo a inovação e impulsionando o desenvolvimento econômico.
Com Drex, Banco Central implementa modernização tecnológica
O Drex não é uma nova moeda, mas um novo alicerce tecnológico para o sistema financeiro brasileiro. Toda essa tecnologia que vimos está disponível hoje, é aberta a quem quiser conhecer e tem código fonte livre. E melhor: foi validada em um sistema totalmente descentralizado e não regulado por entidade governamental. A proposição do BIS com o conceito de CBDC é de que os bancos centrais também podem, e devem, se beneficiar dessa tecnologia para modernizar seus sistemas financeiros.
No caso brasileiro, o Banco Central, na função de regulador, pretende empregar blockchain como plataforma tecnológica para modernizar o sistema financeiro nacional com o Drex. Atualmente, milhares de sistemas diferentes são usados para que o nosso ecossistema financeiro funcione. Alguns deles são bem antigos e com diversas tecnologias diferentes.
Usar blockchain visa padronizar, modernizar e simplificar essas soluções. Ao mesmo tempo, abre as portas para incorporar as inovações de DeFi e o “Dinheiro Programável” no cotidiano das pessoas num ambiente regulado e supervisionado pela autoridade bancária. O impacto no dia a dia das pessoas não será imediato. Mas, gradualmente, as pessoas começarão a acessar novos serviços através de suas instituições bancárias. Isso abrirá, inclusive, a possibilidade futura de opções ampliadas de investimento, empréstimos e seguros.
Assim como o PIX trouxe a bancarização para 40 milhões de pessoas, o Drex poderá ser o advento da democratização de soluções financeiras. Dessa forma, pode elevar a qualidade e a diversidade das opções, que até têm sido acessíveis a uma parcela mínima da população, abrindo caminho para uma economia tokenizada.
O Piloto do Real Digital
A fase atual da implantação do CBDC brasileiro é o Piloto Drex, antes chamado Piloto do Real Digital. Depois de várias discussões e experimentações no LinLab, dentro da agenda BC#, uma pauta de trabalho centrada na evolução tecnológica para desenvolver questões estruturais do sistema financeiro, o Banco Central lançou, no início de 2023, um edital para que instituições financeiras e o a Secretaria do Tesouro Nacional participassem de uma prova de conceito para validar definições de tecnologias a serem utilizadas numa possível implementação dessa nova plataforma. Ao todo, 16 consórcios foram selecionados e autorizados a executarem esses testes.
O teste consiste em interligar os bancos selecionados através da Rede do Sistema Financeiro Nacional (RSFN) a uma blockchain gerenciada pelo Banco Central usando tecnologia EVM da Ethereum, implementada pela solução da Hyperledger Besu. Uma vez que a interligação acontecer, o principal caso de uso do teste com smart contracts será a negociação de Título do Tesouro Nacional entre clientes de diferentes instituições. No modelo atual, o cliente só pode comprar títulos diretamente do Tesouro ou de instituições financeiras. A transferência de títulos entre pessoas não acontece com facilidade, devido a uma lacuna tecnológica de uma plataforma de liquidação atômica, ou seja, que permita a transferência contra pagamento de diferentes ativos. Conforme o projeto avançar, poderá haver a execução de outros casos de uso.
A previsão é de que em março de 2024, os participantes se reúnam com o Banco Central para discutirem a solução e seus resultados. Só então, o Banco Central deverá tomar uma decisão sobre seguir com o projeto para implementação efetiva do Drex entre os banco e elaborar um cronograma para isso. Muitas coisas ainda estão indefinidas. Esse é só o início da jornada do Drex e esperamos muitas aprendizados e inovações ao longo do projeto.
*Bruno Grossi é Gerente Sênior de Tecnologia do Banco Inter.