“As empresas precisam mudar o paradigma de cultura centralizada para a descentralizada, se quiserem acompanhar uma mudança tecnológica que em pouco tempo será tão real quando as redes sociais no dia-a-dia das pessoas.”
Seguindo o elo da Corrente de Mulheres, depois de ter falado mais sobre o meu trabalho com na Moeda Semente para a Dari Santos, do Instituto Alinha, foi a minha vez de ouvir e conhecer mais sobre o trabalho de outra especialista em blockchain. Uma tecnologia que veio para ficar e transformar a atuação de governos e iniciativas privadas em diferentes âmbitos.
Marcela Gonçalves, autora da frase que destaquei acima, é diretora de Desenvolvimento da Multiledgers, empresa que foca em infraestrutura em blockchain. É engenheira de Controle e Automação de formação, com MBA em Inteligência Competitiva.
Seus mais de 17 anos de experiência na liderança de projetos em inovação, desenvolvimento de softwares e planejamento de Negócios nas áreas Industrial, de Gestão e TI acabaram levando-a para o caminho de ajudar projetos a se estruturarem já a partir da tecnologia blockchain.
E foi por isso que escolhi conversar com ela para contribuir com essa corrente sobre mulheres em blockchain. Marcela falou muito sobre como o blockchain é a tecnologia da informação e como, ao observar a velocidade da resposta cada vez mais rápida das pessoas a novas tecnologias, as empresas, indústrias e governos já estão atrasadas em se adaptar a isso.
De acordo com ela, em um curto espaço de tempo veremos o blockchain como realidade no dia a dia das pessoas, tal qual vemos hoje as redes sociais e todas as outras formas digitais de comunicação. Algo que há cerca de 10 anos parecia ainda muito distante de acontecer. Abaixo, nossa conversa.
“Tenho o papel de transformar pensamentos”
TR: Marcela, o que despertou em você o estudo e trabalho em blockchain? Pode contar também um pouco da sua atuação nessa área hoje?
MG: Esse despertar aconteceu quando entendi que o blockchain é uma forma de compartilhar e circular informações entre diversos atores, mantendo sua proteção e sigilo. Isso faz com que automaticamente essa seja uma ferramenta descentralizadora, tornando as relações entre pessoas, empresas, indústria e governos muito mais transparentes e confiáveis.
TR: Pode contar também um pouco da sua atuação nessa área hoje?
MG: A minha atuação foi se transformando nesses 17 anos e hoje meu foco está na construção do aprendizado. Entendi que tenho o papel de uma transformadora do pensamento, uma vez que pensar um modelo de negócio em blockchain é diferente de pensar um modelo de negócio centralizado.
Esse processo culminou na construção de ferramentas para ajudar negócios a entender como podem construir esse novo modelo, inclusive com um Canvas (ferramenta colaborativa para inovação de modelos de negócios, que pode ser utilizada na criação de uma nova empresa ou de reorganização de empresas já estabelecidas) de ecossistemas para aplicação em blockchain.
Tenho aplicado bastante essa metodologia nos projetos mentorados no LiftLab (projeto de inovação financeira do Banco Central do qual a Multiledgers é parceira). Um fator muito importante em que os projetos ainda estão engatinhando é que quando falamos em blockchain, precisamos falar das suas estruturas de governança nas empresas. Isso também é um foco do meu trabalho com os projetos.
“Blockchain não se resume a criptomoedas”
TR: Para muitas pessoas, blockchain se resume a criptomoedas. Ainda que importante no processo de economia tokenizada, a solução vai muito além. Pode explicar?
MG: O blockchain é a tecnologia por trás das criptomoedas, mas de fato, não se resume a isso. O blockchain nada mais é do que a convergência de tecnologias que já existiam, entre elas a computação distribuída (pier2pier); o consenso e a criptografia assimétrica. Ou seja, é uma nova forma de gestão da confiança para que as pessoas possam voltar a acreditar na veracidade das informações compartilhadas.
Blockchain é rede, é tecnologia da informação com segurança, eficiência, rastreabilidade, transparência e auditabilidade, portanto é aplicável em qualquer tipo de transação que envolva a necessidade de compartilhar informação entre parceiros que precisam garantir um ambiente sem disputa.
Para exemplificar de forma prática, cartórios podem usar para registrar as informações sobre um imóvel, sobre pessoas físicas de forma a evitar fraude. As indústrias podem usar para oferecer transparência para seus clientes sobre seus insumos. O consumidor pode acompanhar todas as informações do produto que comprou desde a fabricação da obra-prima até a chegada do produto na prateleira, sabendo inclusive sobre a relação das empresas com a mão de obra envolvida nesse processo.
“Empresas têm que mudar o paradigma”
TR: Na sua visão, o que falta para o mercado fazer a virada de chave e adotar blockchain como hoje faz com as redes sociais e internet, por exemplo? O que levaria todas as empresas a terem seu diretor de blockchain e pensar sobre isso estruturalmente?
MG: Tem que pensar em um modelo de negócio descentralizado. As empresas precisam mudar o paradigma de cultura centralizada para a descentralizada se quiserem acompanhar uma mudança tecnológica que em pouco tempo será tão real quando as redes sociais no dia-a-dia das pessoas.
É uma mudança significativa de paradigma porque a empresa tem que pensar em não ter a posse de dados como tem hoje. E hoje as empresas mais valiosas são os grandes conglomerados de dados como Google e Facebook. É necessário compartilhar,e não estou falando em revelar, os dados.
Se observarmos, o blockchain traz possibilidade de criação de ambiente de compartilhamento para as empresas que já tiveram as tentativas de construção com ERP (planejamento de recursos empresariais) e com o SOA (service-oriented-architecture). Mas mesmo sendo transversais, esses sistemas sempre eram centralizados, sempre tinha o dono dos dados.
Essa mudança de paradigma começa aí, no entendimento da necessidade de entender quais dados compartilhar. Quando a gente começa e tem o movimento por esse novo ambiente econômico, as empresas passam a ser obrigadas a navegar nesse mar. Porém, ainda não estão enxergando essa necessidade.
Elas ainda estão olhando para a transformação digital, que ainda nem contempla blockchain. Não contempla uma tokenização em cima de seus ativos, nem modelos de negócios tokenizados. Elas ainda estão nessa inserção da indústria 4.0, de um ambiente omnichanel.
Governança, modelo de negócios governança
TR: Mas quais fatores você acha que deixariam as empresas mais confortáveis para essa mudança?
MG: Acho que estamos na construção desse caminho. Mas identifico três fatores que acelerariam a maturação desse processo. Primeiro, a regulação, porque a especulação ainda é muito grande e deixa o token volátil demais. No entanto, as DeFis (finanças descentralizadas) vão exercer um importante papel, principalmente, junto ao regulador.
Em segundo lugar, uma mudança de modelo de negócio, do mindset centralizado para descentralizados. As empresas não querem perder o que já está consolidado.
Acho que grandes empresas podem construir um spin off delas mesmas. Com a possibilidade de serem um laboratório para transitar nesse novo mundo e trazer informações para o ambiente tradicional, que vai mudar ao longo do o tempo, deixando-as preparadas.
E tem a questão de estrutura de governança e interoperabilidade. A tecnologia ainda não está madura. Os protocolos são caros e há questões como respostas lentas. Cada modelo de negócio pode trazer necessidades diferentes do mundo da tecnologia.
Hoje já existem protocolos diferentes, mas podem surgir outros que vão melhorar essa experiência. Temos discutido muito no ITU (União Internacional de Telecomunicações da ONU) a maturidade da tecnologia propriamente dita. Precisa estabelecer melhor comunicação entre os protocolos para melhorar a interoperabilidade. Mas também estrutura um modelo de governança como hoje já temos para internet.
Liftlab e sandbox: sem medo do regulador
TR: E qual a sua percepção sobre o sistema regulatório no Brasil?
MG: Acho que ainda não é muito aberto para inovação financeira. O que tem ajudado são esses ambientes como o LiftLab, onde você propõe uma nova finalidade para o sistema financeiro e tem acompanhamento com o próprio regulador.
Estar próximo do regulador sem ter medo dele, estruturar o negócio com o próprio regulador olhando e entendendo que aquela inovação precisa de uma atualização de instrução, é muito positivo.
Mas, no geral os reguladores estão começando a entender essa necessidade. Acho que o sandbox da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e o da Susep (Superintendência de Seguros Privados) permitem essa evolução.
O Lift mesmo é um pequeno laboratório em que são propostas novas formas de interações. Um projeto bem arrojado, pois são três meses com sabatinas de entregáveis a cada 15 dias e relatórios todos os meses. O sandbox do Banco Central busca acompanhar esses avanços.
CBDCs trarão maturidade em criptomoedas
TR: Falando em criptomoedas, a volatilidade está sendo destacada pela mídia tradicional. Você acha isso uma ameaça para a expansão dos criptoativos?
MG: Vamos dizer que o ambiente de bolsa de valores também pode ser volátil, não é? Tivemos o caso do fundo ter apostado na baixa das ações da GameStop. As pessoas se juntaram no Reddit e fizeram as ações alavancarem, causando perda a investidores tradicionais, por exemplo.
Mas, tivemos a manipulação do Elon Musk (fundador da Tesla) de acordo com ele querer vender ou comprar, os NFTs que fizeram o Ethereum dar um boom este ano, o DeFi que era a bola da vez ano passado… mas tudo isso é porque o mercado ainda está amadurecendo.
Acho que veremos uma maturidade maior a partir das CBDCs (moedas digitais de bancos centrais). Você vai ter um ativo que já nasce digital, tendo essa correlação com as moedas. E mesmo que questionem por ser do Banco Central de um país, vai permitir a integração entre os diversos tipos de moedas, como as de protocolos, moedas estáveis e as sociais. As CBDCs terão uma certa auditoria que vai trazer uma segurança um pouco maior em alguns casos.
TR: Isso facilita o open banking, também, e a tokenização veio para ficar…
MG: Exato. Eu acho que esse é o principal legado da construção da tecnologia. Daqui a 10 anos, o blockchain, ou DLT (Distributed Ledger Tecnology) vai ser uma realidade tão comum como são hoje as interações pela internet e redes sociais. A gente também não sabia muito bem o que ia acontecer com a internet há 20 anos. O mais legal é justamente não sabermos até onde a tecnologia vai chegar.
Mulheres em blockchain
TR: Por fim, gostaria que mandasse uma mensagem sobre blockchain, que pode ser um convite para as mulheres que já trabalham e estudam tecnologia ou para aquelas que pretendem. Por que precisamos cada vez mais da liderança feminina nessa área?
MG: Eu vim da engenharia. A maioria dos meus ambientes de trabalho foram muito masculinos. Existe uma naturalização das questões de você ser mulher nesse ambiente masculinizado e a sua construção profissional acaba sendo mais masculina. Você acaba naturalizando coisas que demorei muito tempo a entender.
‘Você é tão boa programadora quanto um homem’ era algo que ouvia muito e achava normal porque não tinha referência. Só recentemente comecei a entender o problema disso. O primeiro conselho é: busquem mulheres para serem suas referências. Hoje temos muito mais acessos a grupos de estudos, coletivos, comunidades que acolhem mulheres e ajudam na nossa construção nesse ambiente de tecnologia, inclusive blockchain.
No entanto, tem dois aspectos que considero importantes para quem for atuar nessa área. Precisa estudar muito sobre desenvolvimento de sistemas distribuídos para chegar com base e começar a entender e trabalhar melhor em cima da tecnologia blockchain.
E é fundamental conhecer sobre negócios, que é entrar mesmo para estudar toda a construção que vem acontecendo na transformação digital como um todo. Isso inclui entender as necessidades tecnológicas, o que precisa trabalhar esse novo ambientes de colaboração, descentralização e distribuição de informação e o lado financeiro. Ainda há muito ganho para vir dessas novas relações financeiras proporcionadas pelos ativos digitais.
Esse movimento da Corrente de Mulheres é super importante para que possamos dar espaço para que outras mulheres possam falar um pouco mais, ter mais visibilidade nessa em tecnologia e blockchain. E eu falo em qualquer lugar onde eu esteja que a gente precisa dar apoio às mulheres.