Real digital: “tudo vai ser digital. Estamos nos preparando para o futuro”, diz representante do BC

Real digital vai gerar produtos tão modernos que hoje nem se consegue prever: Eduardo Arsand, Pixabay.

“A relação das pessoas com as coisas vai ser muito diferente da que a gente teve até hoje. Tudo vai ter representação digital. E quando tem tudo digitalizado, se a moeda estiver fora desse ambiente, vai gerar ineficiência para as operações. Nós estamos nos preparando para o futuro.” É assim que Fábio Araújo, coordenador dos trabalhos sobre o real digital no Banco Central (BC), descreveu o movimento que a instituição está fazendo.

Araújo participou do último Lift Talks da Federação Nacional de Associações dos Servidores do Banco Central (Fenasbac), nesta semana. O tema foi “Real Digital: os casos de uso da CBDC no Brasil e no mundo”. E na conversa, uma das afirmações mais repetidas é a de que a moeda digital abrirá tantas possibilidades de novos produtos, serviços e de maior eficiência, que hoje ainda nem é possível ver onde vai chegar.

Por isso é que comparar o dinheiro usado no Pix com uma CBDC equivale a comparar, nos primórdios da internet, a rede com a TV, o rádio ou com os primeiros grupos online de conversas. Rodrigoh Henriques, líder de inovação Fenasbac, lembrou que por trás de uma CBDC há questões como tokenização, contratos inteligentes, criptomoedas, dinheiro programável e finanças descentralizadas – ou seja, sem bancos.*

A seguir, a discussão sobre o que o real digital representa. Além de Araújo, participaram da conversa Gustavo Cunha, economista e fundador da plataforma de educação FinTrender, e Keiji Sakai, diretor geral da R3 no Brasil. Henriques mediou a conversa.

O que é o real digital

Araújo: Do ponto de vista do regulador, a moeda digital é a que se usa no dia-a-dia, mas que a pessoa nunca vai segurar na mão, vai estar num dispositvo.

Cunha: É algo que você negocia no campo digital. As figuras das notas estão em extinção, não vai mais ter lobo-guará. E é moeda do banco central, enquanto a grande maioria hoje é de bancos.

Sakai: É o terceiro formato do dinheiro emitido por um governo, por um banco central. Há o físico, o em conta corrente, em reserva, e o digital. É parecido com reserva em conta corrente. Mas será usado em negócios que hoje não pode ser usado.

Um futuro todo novo

Araújo: Estamos nos preparando para o futuro. Os sistemas que utilizamos são referências mundiais. A CBDC não vai resolver nenhum desses problemas que já resolvemos. Apesar de que alguns países estão usando CBDC para isso. O real digital é para fomentar a transformação digital da nossa sociedade tanto no dia-a-dia, quanto nos negócios. Tanto a geladeira que pode comprar o leite, como o carro que paga o estacionamento.

O banco ou a fintech vai, por exemplo, poder oferecer contrato de crédito personalizado, que é pago a cada dois meses, mas tem um mês que não é pago. Isso se for digitalizado com smart contracts, porque aí é coisa simples, é natural. Desde que avalie o crédito e ache que o fluxo de caixa da pessoa bate com aquilo que ela propõe, a empresa pode dar um crédito com essa diferença, o que reduz a ineficiência da economia.

Hoje, o mercado tem a prateleira dele com os produtos e você tem que se encaixar no que tem lá. Para ter algum grau de personalização do produto,  o produto fica muito caro e inviável.

Entregas x pagamentos na hora

Sakai: A CBDC é uma evolução de meios de pagamentos. O PIX é um grande leque de meios de pagamentos. A CBDC resolve vários problemas atuais, como o delivery x payments (DVP, em ativos como casa e títulos financeiros). Hoje, ou se recebe o ativo e paga depois, ou vice-versa, e alguém está com risco de crédito nisso.

Se conseguir fazer esse DVP do dinheiro de forma “atômica”, começa a eliminar ineficiências do mercado. Ineficiências são caras porque você acaba tendo intermediários para ter proteção, como bancos, clearings e corretora que fazem a liquidação e te dão as garantias para você não ser lesado num eventual calote. Nas transações transfronteiriças (câmbio), CBDCs podem facilitar bastante.

Cunha: Tudo vai ser digitalizado e nada é mais natural do que uma moeda digitalizada que trafegue nesse ambiente. Quando olho a CBDC, vejo que se abre um leque de possiblidades bastante grande. Mas precisa ter consulta pública para ver o que, desse leque, achamos que para nós, como sociedade, pode ser implementado.

CBDC x Pix

Araújo: O Pix parece uma moeda digital. De fato, se juntar com as instituições de pagamentos (IPs) que emitem moeda eletrônica, é basicamente um sistema de moeda sintética. É uma visão um pouco mais tradicional da CBDC. Mas, nesse caso haveria alguma dificuldade para implementar essas novas tecnologias, como smart contracts, conectar as redes de ativos tokenizados e ter DVP.

O Pix,com o sistema de IPs do Brasil, basicamente resolve os problemas que os outros países trabalham hoje para resolver com uma CBDC, que é quase uma CBDC sintética. Por isso, o real digital tem que ir além do que o Pix oferece. E tem que ter o passo intermediário, que é o open banking, que fará a informação financeira das pessoas fluir de maneira natural. Você vai criar um ecossistema de fintechs, por exemplo, que vai analisar esses dados e criar produtos financeiros mais adequados à necessidade de cada pessoa.

Vai ser tudo num ambiente digital. Vai ter ativos que já nascerão digitais. O real digital abre um leque de oportunidades muito grande. O foco do Brasil é no fomento a novos produtos no dia-a-dia das pessoas, novas maneira de liquidar operações automáticas entre máquinas. A pessoa não precisa entrar diretamente na operação, só dá a autorização a uma máquina para fazer a operação para ela. Isso num sistema aberto, sem precisar estar associado com o provedor de um arranjo de pagamentos e em depois em outro e outro. Isso hoje gera muita ineficiência.

Com CBDC, a pessoa faz todos os pagamentos sem ter acordo com ninguém. Você tira o intermediário. Você dá vários passos (além) da tecnologia atual, tirando os intermediários para garantir esses passos. O real digital faz a ligação direta entre o usuário e a liquidação do produto.

Euro digital é mais simples

Cunha : Se o real digital for mais simples, como está moldando a Europa, é muito parecido com o Pix. Mas a CBDC abre possibilidades de sabores muito diferentes e vamos ver o que desses sabores vamos querer implementar pensando em facilitar a vida. Se a gente tiver uma moeda digitalizada sem intermediários, facilita muito as coisas e muitos casos de uso que a gente nem imagina hoje vão surgir no decorrer do processo. E vão precisar dessa moeda para serem negociadas.

Quando a gente fala de papel moeda, não precisa controlar o meio. No digital tem outras preocupações sobre a rede. Ela tem que se comunicar com outras redes para trocar real digital por euro digital.  

Interoperabilidade entre moedas

Sakai: Isso já é uma discussão em andamento entre vários BCs. Na Ásia, há acordos de testes entre quatro países. Na Europa, o Banco da França e da Suíça também fizeram testes. Mas há duas interoperabilidades: uma é a de rede, porque o ente brasileiro não faz parte da rede da Europa, por exemplo. Na integração, vai precisar que ter algo que permita a troca atômica, onde de um lado você tem o regulador que faz o trâmite e a governança da rede local, e do outro lado, a mesma coisa. É uma discussão mais negocial do que técnica.

E tem integração técnica, de plataformas distintas, que também é um assunto em discussão. Há conversas da R3 com os concorrentes para garantir que o DVP aconteça de forma atômica nas redes para garantir que a operação seja executada. A gente está em fase bem embrionária nesse assunto. Só as Bahamas têm implementada a CBDC e talvez não seja tão relevante no comércio exterior para fazer experimentos de troca de moedas.

Risco de substituição de moeda

Araújo: O risco de substituição de moeda é um dos primeiros que foi mapeado quando se falou de CBDC, foi o primeiro que apareceu no nosso radar. A coordenação internacional é fundamental para suplantar esse risco e tenho visto nos fóruns internacionais que todos os países têm ciência disso. Acho que as conversas caminham muito bem, porque nenhum país tem intenção de interferir na politica monetária de outro. Não é interesse de um país emitir tanta moeda que será usada fora da sua jurisdição.

Uma substituição (de uma moeda por outra) seria como é hoje, ou seja, voluntária. Os países sabem que é mais difícil, porque como a digital não vê fronteira e não tem custo de carregar mala de dinheiro para transferir grande quantidade, tem que ter mecanismos para que fora da jurisdição, não circule. O risco é se os países não estivem dispostos a adotar esse mecanismo. Mas isso está suplantado.

O mais importante é a oportunidade de interoperabilidade dos sistemas. Há dificuldade de integração, mas todos estão discutindo o tema e poderá haver um sistema que leve a essa integração. Há dificuldade de interconexão tecnológica também, mas parece que todos os países estão bem alinhados.

Fuga para outra moeda

Cunha: O real digital vai ser igual ao do papel. O dólar em papel é mais caro porque é menos eficiente. Os sistemas mais eficientes, mais modernos e rápidos, tendem a ter spreads menores. Se uma das moedas tiver uma eficiência maior que as outras, pode haver uma migração para ela. Seria então a moeda do mundo e ditaria a política monetária mundial. Isso está sendo endereçado pelos bancos centrais na discussão que o BC está tendo.

Se pensarmos que um país terá uma moeda com casos de uso melhores que outras, vai possibilitar mais inovação e crescimento maior naquele país. Isso incita os BCs a olhar a questão para ou puxar a discussão, ou não ficar muito para trás.

Outro ponto é que a interoperabilidade é importante para fechar câmbio. Do Brasil para Portugal, isso leva dois dias e não é por conta de tecnologia, porque se manda em 15 segundos em criptomoedas. Mas no sistema tradicional, precisa ver como será feita essa transição de um sistema legado para um mais eficiente.

Araújo: Ter uma moeda tão mais avançada gera benefícios que fará as pessoas quererem trocar (suas moedas) por ela. Pode ser uma coisa num cenário real em algum período do tempo. Mas, o problema é que a autoridade monetária que emite a moeda não está levando em conta o ciclo econômico do seu país, mas o do pais dele. Por isso q os BC só vão emitir moeda para outro país se eles quiserem, mas tem que saber que ele não está acompanhando o ciclo econômico deles.

*Reportagem atualizada às 14h23, corrigindo o sobrenome do líder de inovação da Fenasbac, Rodrigoh Henriques.

Compartilhe agora

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress